Rio de Janeiro, 1978, estúdio do selo Esquema. Risoleide Alves, uma jovem cantora de Caruaru, aguarda a sua vez para gravar. Luiz Gonzaga está presente no mesmo local. Risoleide tem, então, um encontro com o Rei do Baião:
Alguém no estúdio diz: Chamem a cantora de Caruaru, Risoleide Alves.
Luiz Gonzaga: “Pera aí, ela canta o quê?”
Responderam: “Ela vai gravar forró”
LG: Eu não acredito que uma cantora de Caruaru vai gravar forró com esse nome. Cadê ela?
Risoleide Alves se aproxima.
LG: Ah, eu já te conheço, você é “meia banda”.
Risoleide Alves: Por que “meia banda”, seu Luiz?
LG: Porque na banda de Camarão [Mestre Camarão, grande sanfoneiro do Agreste pernambucano] você canta uma noite todinha. É você e a banda, não tem outro cantor. E você aguenta.
LG: Olhe, minha filha, você cantando com esse nome, gravando com esse nome de Risoleide, você não vai gravar forró, vai gravar bolero. Então, se você aceitar, a partir de hoje, seu nome pode ser Joana. Santa Joana é a protetora dos artistas, protetora do Nordestino.
RA: Então tá ótimo, seu Luiz! Risoleide não tá mais aqui, não!
Joana Angélica. Uma mulher, cantora, mãe, avó, caruaruense da Rua Preta. Nascida no seio de uma família que respirava música, cresceu vendo o seu pai tocar violão enquanto sua mãe cantava, e seu irmão era sanfoneiro. “Hoje eu tenho 74 anos e nunca esqueço dos primeiros gritos que eu dei com a música, cantando. Naquela época, eu não cantava, eu gritava”, relembra.
Aprender a cantar no grito era um indício da coragem e da confiança que a menina tinha em si mesma. “Eu tinha muita vontade de ser cantora, e graças a Deus, deu certo”, assegura.
A trajetória como cantora não foi fácil. Na época em que começou, na cidade de Caruaru, os conjuntos eram dominados por homens, dos instrumentos até os vocais. Naquele contexto, a jovem e talentosa Risoleide Alves, ou, melhor dizendo, Joana Angélica, veio para buscar o seu espaço nos palcos.
A primeira lembrança em cima do palco evidencia como a estrela de Joana sempre brilhou. “Eu ia passando aqui, em frente a uma casa de show, no bairro São Francisco, e estava tendo um show de Cauby Peixoto. Eu ouvi quando falaram assim: ‘eu quero que uma criança venha aqui no palco pra cantar’. E eu fui”.
Com apenas oito anos de idade, Joana encarou o público e cantou uma música de Cauby para o próprio artista ouvir. O sucesso foi tanto, que a menina ganhou mil cruzeiros, um tênis “sete-vidas”, e o mais importante: se tornou, ali, cantora. “E eu já saí me amostrando pela rua, dizendo que era cantora. E nunca mais eu quis saber de outra coisa, nem de brincar de boneca. Só queria cantar”, recorda.
Anos depois, finalmente veio a oportunidade de ser a voz feminina na icônica Bandinha do Camarão. Joana Angélica foi a primeira cantora de um conjunto forrozeiro de Caruaru. Por não haver mulheres protagonistas em cima do palco àquela época, a perseguição era constante. “Então, na época não havia mulheres. Muitas vezes fui barrada quando ia tocar no Comércio, no Intermunicipal. Ia cantar, a banda já estava no palco, e eu chegava atrasada porque eles não me deixavam entrar quando chegava”.
As pessoas não estavam habituadas a ver uma mulher como líder de uma banda, em Caruaru. Mas, com o apoio incondicional do Mestre Camarão, o público teve que se acostumar. “Camarão enfrentou tudo pra que eu continuasse na banda porque, na época, não havia mulheres nos conjuntos”.
Camarão foi uma referência que acompanhou Joana em vários momentos de sua vida e carreira. Foram 30 anos na Bandinha do Camarão, onde a cantora se virou cantando de tudo, em muitos lugares: baile de formatura, batizado, aniversário. Forró, mesmo, era só no mês de junho.
Com uma voz única, aveludada, Joana Angélica levava jeito para cantar forró. A confirmação veio num encontro com a cantora Marinês. “Olha, você tem uma voz muito bonita, aproveite, escolha um estilo pra você e seja pioneira na sua cidade. Você canta forró muito bem, por que não canta forró?”, sugeriu Marinês.
“Fui batizada por Luiz Gonzaga e meu estilo de música foi escolhido pela Rainha do Xaxado, nossa querida Marinês. Pra mim é tudo, é muito orgulho, é muita coisa, não é pra todos”, se emociona Joana.
Em 1978, Joana Angélica lançou o seu primeiro LP com o selo Esquema. Na época, a gravadora do Rio de Janeiro procurava por novos talentos e encontrou uma cantora que desejava brilhar. Contratada, recebeu a passagem para o Rio e as instruções para quando chegasse na capital. “Aí eu saí por Caruaru, procurando tudo quanto foi de compositor. Naquele tempo, eu tinha a mente boa, a cabeça boa mesmo. Aprendia as coisas rápido, montei o repertório e fui embora pro Rio”.
O repertório não poderia ser mais afiado para a estreia de sua carreira solo. No LP ‘Forró’ se destacam: ‘Maturi’ (Paulo da Hora, Rafael Azevedo), ‘Sanfona Dengosa’ (Juarez Santiago, Camarão), ‘São João Não Me Olhe’ (Everaldo do Acordeon, Risoleide Alves e Américo Lima), ‘Carro de Boi’ (Jaime Mendonça), e ‘O Vencedor’ (Juarez Santiago, Adolfo da Modinha). O disco tinha um pé no forró tradicional, mas era ousado ao mostrar um forró também diferente, atualizado para o contexto da época, e na medida certa para o público dançar. Nas letras, estão impressas paixões e temas cotidianos.
Os discos ‘Forró’ (1978) e ‘Forró Bom’ (1979), lançados pela Esquema, trazem nas capas fotos da mesma sessão fotográfica, organizada pela própria Joana. “Então, eu tirei foto e deixei tudo com eles lá na gravadora, pro primeiro disco. Quando foi pra fazer o outro, aí falaram que não precisava tirar foto porque eu tinha deixado lá as que tirei e eles iam aproveitar”.
Vaidosa e cada vez mais confiante da sua identidade enquanto artista, tal circunstância não a agradou muito. “Eu teria que ter feito outras fotos, com outras roupas, mais arrumadinha. Mas eles preferiram assim, e assim foi”.
E foi no estúdio que Risoleide foi definitivamente batizada como Joana Angélica. “Aí o rapaz do estúdio falou: ‘tem um bocado de Angélica aqui no Jardins, por que você não bota Joana Angélica? Quando você passar pelo Rio de Janeiro e estiver numa esquina para atravessar a rua, você vai ver: Avenida Joana Angélica, Travessa Joana Angélica, e vai ser lembrada sempre’”.
Do trabalho solo vieram outros LPs de sucesso, um compacto, alguns CDs e uma carreira longa e prolífera. Tudo isso registrado em fotografias que Joana Angélica guarda com muito carinho em sua casa. “Eu tenho um histórico de fotografia muito bonito, viu?”, se orgulha. As fotografias marcam o tempo, os encontros e as memórias de Joana, mas o orgulho maior continua sendo a música. “A música me deu tudo: me deu nome, me deu conhecimento. Porque eu nunca estudei, não tenho outra profissão além da música”.
Nas contas de Joana Angélica foram 28 shows no palco principal do São João de Caruaru, fora as apresentações em outros locais da cidade. A cantora foi homenageada pela festa do São João de Caruaru em 2017 e também foi considerada patrimônio vivo da cidade, em 2020.
Joana Angélica sabe da história que escreveu no forró e na sua cidade natal. História forjada com a sua voz, a cara e a coragem. Sendo abençoada por Camarão, Luiz Gonzaga, Marinês, Santa Joana e pelo seu público. Sempre que mulheres subirem em um palco de Caruaru, independente do estilo musical, Joana Angélica estará presente.