Nascido e criado em Bezerros, no agreste pernambucano, em 20 de dezembro de 1935, José Francisco Borges faleceu um mês atrás, dia 26 de julho de 2024. Mesmo ele sendo da mesma região que eu (Bezerros fica a 32km de Caruaru e todo mundo é mais ou menos parente), nós não tínhamos ninguém em comum, amigos, familiares, nada. Não éramos amigos, nunca trabalhamos juntos, sequer fomos apresentados pessoalmente. Mas, por algum motivo, a partida de J. Borges me deixou toda desorganizada. Fiquei sem entender nada, uma semana depois do falecimento do multiartista, quando me peguei falando dele na terapia. Me perguntava: como pode eu estar tão coisada pela morte de alguém tão distante de mim?
A surpresa com minha própria reação deve vir do fato de que eu venho de uma família que tem um vínculo noiadíssimo com ela, a morte. Lá em casa, bater as botas é castigo e tabu, algo que a gente evita falar e pensar, e quase finge que não existe: vovó, nossa chefa, nunca foi no enterro de ninguém (nem do marido, nem das filhas, ninguém); quando éramos crianças, nunca fomos comunicadas do falecimento de um parente (era sempre uma viagem que alguém tinha ido fazer), nem éramos levadas pra visitar os moribundos, muito menos comparecer aos enterros; até hoje não se visita nossos mortos no cemitério, mal se tem fotos dos defuntos da família nos porta-retratos. Depois que fiquei adulta, eu, que acho tudo isso uma esquisitice, tento ir pelo caminho inverso: visito os moribundos, vou a velórios e enterros, visito a galera no cemitério, ajeito seus túmulos, acendo vela, rezo, bato papo com meus mortos a qualquer hora do dia (e eles resondem). Rolê assim é comigo mesma.
Eu tento, ao menos racionalmente, agir de modo que a morte seja continuidade, e não interrupção da vida, e isso tem feito com que eu navegue o luto das pessoas mais importantes que “perdi” até agora (minha prima Lela e minha vó Adelaide) de forma menos traumática.
Porque o passamento é basicamente isso: é aquilo que acontece para que os vivos aprendam a reorganizar a vida sem aquele que morreu. A coreô chamada cotidiano, que você fazia com o morto antes dele morrer, tem que mudar, você tem que readaptar o passo e, quanto mais colada era a dança, mais estranho vai ser a retomada da coreografia.
Com J. Borges é um bocado diferente, pois não se trata de uma perda pessoal, nem para mim, nem para ninguém que eu amo. Mas tem dois aspectos que nos aproximam.
O primeiro é mais racional: eu, que não chego nem à sola dos seus pés, me sinto um pouco próxima dele, na medida em que, como ele, também trabalho com duas mídias, imagem e poesia (além do fato de nos preocuparmos com as coisas do nosso povo). J. Borges é, portanto, uma referência central. Para mim, ele era mais ou menos nosso Leonardo da Vinci, como o é quase todo brasileiro: para viver, fez de tudo um pouco e era bom em tudo que fazia: foi vendedor de ervas, pedreiro, lavrador, carpinteiro e oleiro, antes de virar poeta, ilustrador, xilogravurista.
O outro aspecto é da ordem emocional: através de sua arte, ele esteve presente em um monte de ocasiões importantes da minha vida. E ele foi o presente que dei a um ex-sogro quando ele se casou de novo; foi o que dei a Benjamin Moser como cidadão honorário caruaruense de mentirinha (kkk) quando finalmente nos conhecemos pessoalmente, depois de anos de amizade virtual; foi, também, o primeiro presente grande que dei a Lukas, quando fizemos dois anos de namoro, e foi o que lhe trouxe quando voltei de Caruaru, agora em julho; foi o que minha mãe nos deu quando eu e ele viemos morar juntos; é o brinde que me dou quando sinto que preciso dar um grau na minha casa ou na minha vida; é o cordelista que dei ao meu grande amigo Leo Marona, dia desses, quando ele estava passando por uns maus bocados; é o autor de alguns dos meus cordéis preferidos, ou de suas capas.
Olhando pra essas passagens, só consegui chegar à conclusão de que a pergunta que fiz na terapia estava errada: J. Borges não era “tão distante assim” de mim. Posso dizer que ele era parte da minha vida, não somente como referência/influência, mas como alguém que fazia parte do meu cotidiano doméstico. Por meio de sua arte, ele fez a minha vida um pouquinho melhor. Então, é, sim, de certa forma, uma perda pessoal.
Achar que a sua morte não era da minha conta foi, portanto, tabacudice. Hoje em dia, eu tenho imagens suas nas paredes de literalmente todos os cômodos da minha casa (falando assim parece que moro num castelo, mas são apenas cinco cômodos kkk: quarto, sala, cozinha, corredor e banheiro) e ele está em pelo menos metade da minha pequena coleção de cordéis, seja como autor do texto, ou autor da capa. Para ter essa coleção, vale ressaltar, eu nunca tive que gastar muito do meu salário – e a presença de um artista do porte de J. Borges nas paredes da casa de uma pessoa da classe trabalhadora solidifica ainda mais a sua maravilhosidade.
Eu trabalho meio período no SAC de uma editora, onde ganho meio salário mínimo por mês; nas outras 20 horas eu tento escrever e traduzir poesia, quase sempre com zero ou muito pouca remuneração. Com o salário que eu ganho, nunca poderei nem sonhar em ter um Matisse original em minha casa, independente de quanto eu admire sua obra – e independente do quanto eu mesma trabalhe! Mas J. Borges, que eu igualmente amo e admiro, e que acho que não fica devendo absolutamente NADA nem a ele nem aos grandes artistas europeus do nosso século, não somente está por toda a minha casa, como foram as suas obras que dei às pessoas que amo no decorrer de passagens importantes das nossas vidas.
As pinturas do pintor francês podem chegar a 500 milhões de reais, e estão aprisionadas nas coleções privadas dos superricos, só às vezes dando o ar da graça num grande museu americano ou europeu. Mais raramente ainda, vêm parar no sul global e, ainda assim, de forma seletiva: a primeira vez que Matisse ganhou exposição solo no Brasil foi 2009, e é óbvio que a mostra não rolou nem em Bezerros nem em Recife nem em Mossoró, foi obviamente em São Paulo, na Pinacoteca, onde um ingresso custa 30 reais (que era, aliás, o preço de uma xilo pequena autografada do mestre pernambucano).
Assim, posso dizer que a maioria de nós vai morrer sem ter visto um Matisse de perto, ao contrário de J. Borges, que circula nas nossas vidas. Aqui você poderia argumentar que, ao contrário de uma xilogravura, um Matisse não se copia, o que é só em parte verdade, já que tudo pode ser copiado (e quem diz isso não sou eu, é Walther Benjamim!). E mesmo obras de arte altamente reproduzíveis podem chegar a cifras milionárias, como vimos alguns anos atrás com Cindy Sherman e Richard Prince. A reprodutibilidade é também um caráter da xilogravura, mas o ponto não é esse. Enquanto artistas como Richard Prince fazem da canalhice (e não da reprodutibilidade) sua principal mídia, J. Borges fez do comprometimento com o acesso à arte, a sua.
Na contracorrente do hipsterismo cínico que deu à luz figuras como o fotógrafo estadunidense, J. Borges manteve um ateliê de portas abertas até o fim, na mesma cidade onde nasceu e se criou, vendendo obras que podem reproduzidas ad infinitum, com preço popular e assumidamente feito a muitas mãos, entre familiares e artesãos – sem que isso tenha, jamais, significado em pobreza artística (muito menos moral). Muito pelo contrário: com o passar dos anos, as xilogravuras só melhoraram, enquanto o preço se mantinha sempre acessível, as portas sempre abertas, o endereço sempre o mesmo. Nas palavras do próprio: “Eu gosto que meu trabalho circule. Na casa do deputado, do senador, do presidente da república… mas também na casa do pedreiro, do carpinteiro, do agricultor. Que todo mundo tenha um trabalho meu.”
Os dizeres do pernambucano me lembram um pouco os de Salete Caldart, no livro “Sem terra com poesia”, quando ela diz que a classe dominante, na eterna luta para manter sua hegemonia, vai criar mecanismos que, de um lado, façam a classe trabalhadora crer que não somos capazes de produzir arte e que, de outro, impeçam o acesso popular aos bens culturais. Precisamos estar atentos a isso o tempo inteiro, para termos sempre a certeza que não somente temos direito de produzir arte, como de estar perto dela – o trabalho de J. Borges é uma expressão real dessa lembrança!
Tenho certeza que Van Gogh, que morreu na miséria, nunca pensou que hoje ele estaria restrito às salas de jantar dos maiores filhos da puta do mundo. Em vida, o grande mestre holandês só queria poder pagar as contas, viver com conforto e dignidade (um direito básico de trabalhador, que ele nunca obteve). Um século depois, do outro lado do oceano, brincava um artista do porte de J. Borges, que hoje está na minha casa, provavelmente está na sua, talvez de algum vizinho ou amigo seu. E será no trabalho da família Borges, e de tantos outros xilogravuristas e artistas populares nordestinos, que o seu legado seguirá vivo e democrático, levando beleza e dignidade para a casa da gente, os comuns.