Quem percorre as alamedas do cemitério São Roque, em Caruaru, para acompanhar um enterro ou visitar o túmulo de parentes, costuma encontrar uma mulher solitária, encurvada sobre os túmulos, regando e cuidando das flores que ela mesmo plantou. É comum confundi-la com uma funcionária da prefeitura, mas, na verdade, aos 77 anos, Edite Maria não tem qualquer vínculo empregatício com o município, apesar de ter começado a “trabalhar” no cemitério em 1983.
A presença de Edite passou a ser uma constante no cemitério depois da morte do seu filho, Elenildo Lima, assassinado por engano aos 21 anos, numa encomenda de morte destinada a outra pessoa. “Ele ia entrar pro Exército, mas tiraram a vida dele. Foi por engano, eu não sei nem contar direito. Meu menino gostava de ficar num bar perto de casa, e encomendaram a morte de uma pessoa que também gostava de ir pra esse bar e confundiram com ele. Abri a porta já com os tiros”.
Elenildo foi morto em 19 de outubro daquele ano e, logo depois, a sua mãe começou a visitar o cemitério com regularidade, diminuindo cada vez mais os intervalos entre uma visita e outra. A dedicação e o modo como dona Edite passou a cuidar da sepultura do filho chamou a atenção de pessoas que sepultaram parentes e amigos no mesmo cemitério, então ela começou a receber propostas para zelar por outros túmulos. Hoje, ela cuida de aproximadamente 30. “As pessoas me pedem pra eu tomar conta [da sepultura] de algum parente e me dão alguma ajuda. Não é todo mundo que me paga, mas eu cuido mesmo assim. Fica por minha conta. Eu gosto de estar aqui, as pessoas gostam do meu trabalho. E não é nada demais, fincar umas plantas, aguar, tirar o mato do chão”.
Todos os dias, ao final da manhã, já entrando pelo meio do dia, Dona Edite deixa a sua casa na Rua Boa Ventura, no bairro Petrópolis, e caminha até o campo santo, localizado no bairro Centenário. São quase dois quilômetros a pé. “Eu venho caminhando. Costumo chegar aqui no cemitério perto de uma hora da tarde. Às vezes, demoro mais. Tem dia que venho me distraindo com uma coisa ou outra pela rua, mas todos os dias eu venho. Vou embora só umas cinco da tarde”.
Dona Edite não mora com nenhum parente, vive sozinha, e diz não fazer questão de manter amizade com ninguém. Encostada no portão de um compartimento construído ao lado da sepultura do filho, onde acende velas e guarda vassouras, baldes e outras ferramentas de jardinagem, ela fuma um cigarro como se olhasse a rua, da porta de casa, enquanto fala da sua rotina e do que sonha à noite, quando dorme. “Eu vivo só com Deus, mais ninguém. E não tenho e nem quero amizade. Ninguém tem amigo no mundo, eu prefiro andar só. Eu venho pra cá, passo o dia, chego em casa de noite e faço logo meu café. Deixo o corpo esfriar, me molho, espero mais um pedaço e vou me deitar. Tem noite que é uma agonia, sonho com uns cantos [lugares] estranhos, uns pés de árvores grandes, eu não sei explicar direito. Mas já estou acostumada”.
Para a zeladora, estar no cemitério São Roque é estar perto do filho falecido. “Vir pra cá, é como vir pra perto dele. Cuido do meu filho. Quando o pai [de Elenildo] me deixou, ele tinha oito meses de vida. Ficamos só nós dois, ele era minha companhia, um companheiro. Pra mim, foi ontem que tudo aconteceu”.
Suas palavras me fazem lembrar o livro Medo Líquido, publicado em 2006, no qual o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, já terminando “O Pavor da Morte”, primeiro capítulo da obra, diz que cada morte é uma perda definitiva, irreversível e irreparável de um mundo. Uma ausência eterna, que jamais acabará. Há 40 anos, Dona Edite tenta sustentar e acessar o mundo de Elenildo. Desafia a condição inapelável, sinistra e misteriosa da morte, usando como canal de comunicação entre mãe e filho, o cuidado.
Nas últimas quatro décadas, Dona Edite nunca pensou em deixar de ir ao cemitério São Roque. Ela conta que, em todo esse tempo, sequer pensou no dia em que isso poderia acontecer. “Eu nunca deixei de vir. Nunca pensei nisso. E faz tempo que eu vivo assim. O que eu sei, é que um dia eu venho de vez, não é mesmo?”