Lá em 2018, quando a agricultora Maria Gerlande, de 56 anos, aceitou a proposta do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá para implantar o sistema de Reúso das Águas Cinzas (RAC), destinada à produção de alimentos dentro de um sistema agroflorestal na sua propriedade, ela não contou com muito apoio dos seus familiares e amigos.
O seu marido, Francisco Tavares por exemplo, que também é agricultor, não acreditava que poderia dar certo reutilizar as águas do banho, da pia da cozinha e da lavagem de roupas (que são chamadas de águas cinzas) na irrigação do solo da propriedade rural do casal.
Dona Maria Gerlande e seu Francisco são moradores do povoado Lagoa da Favela, zona rural do município de Flores, a cerca de 341 quilômetros do Recife. No início, enquanto dona Gerlane apostava no reúso das águas e no sistema agroflorestal, seu Francisco trabalhava com a pulverização de agrotóxicos em plantios de fazendas e roças da região. “No começo, ele [Francisco] reclamou muito, mas hoje vê a bênção que nós recebemos. Ele trabalhava com veneno e achava que as coisas só sobreviviam com o veneno”, conta a agricultora.
Em todo o estado de Pernambuco, dona Gerlande foi a primeira agricultora a implantar o RAC e a produzir alimentos e plantas forrageiras (para a alimentação de animais) com irrigação por gotejo, dentro do sistema agroflorestal — uma forma de cultivo que busca o equilíbrio entre a produção de alimentos e a natureza, com consórcios de culturas agrícolas com especialidades diversas, que podem restaurar o solo e produzir alimentos de forma ecológica.
Seu Francisco ainda não tinha ouvido falar desse tipo de plantio. Custou a acreditar que, justamente na sua casa, a experiência daria certo. Observando o trabalho de dona Gerlande e os resultados positivos, passou a apoiar a esposa e a trabalhar com ela no campo, deixando de lado o trabalho como aplicador de veneno em plantações.
“Esse projeto nos beneficiou muito. Percebi que tudo o que a gente reaproveita, tem futuro. Eu demorei a entender, mas, hoje, eu dou um grande apoio. Antes, eu trabalhava com muito veneno, mas não aplico mais. Vendo o trabalho da minha esposa, vi os benefícios que ela estava buscando e as ofensas que eu estava fazendo pra natureza e pra mim, e agora detesto até falar em veneno”.
Como funciona o sistema?
No sistema de reaproveitamento de águas cinzas, as águas já utilizadas nas residências são canalizadas por tubos de PVC para instalações que filtram produtos químicos e outras impurezas. Depois de limpa, a água é bombeada e distribuída por irrigação de gotejamento para os plantios.
O sistema de RAC é composto da seguinte forma:
- Caixa de gordura, primeiro lugar por onde a água cinza passa;
- Filtro cilíndrico de alvenaria, feito com placas pré-moldadas, abrigando camadas de seixo, de brita, areia grossa e carvão;
- Cisterna, também feita com placas pré-moldadas, que estoca a água filtrada;
- A bomba elétrica, que bombeia a água da cisterna até o sistema irrigação por gotejamento dos plantios.
A propriedade de dona Gerlande e seu Francisco tem dois hectares. No terreno, com reaproveitamento da água, os agricultores cultivam e colhem, para a venda em feiras agroecológicas e consumo da família, frutas como goiaba, banana, acerola, pitanga, caju, pêra e algumas plantas forrageiras para a alimentação dos animais. Para dona Gerlande, o Centro Sabiá e os seus parceiros foram fundamentais para que a experiência no seu plantio fosse exitosa.
“É Deus no céu e o Centro Sabiá na terra. Eles me explicaram e aceitei na hora. Com a ajuda deles, tudo mudou na nossa vida. Tanto na questão da água, quanto na questão da limpeza. Antes, os terreiros ficavam sujos, com a água escorrendo de dentro de casa. Com essa água, a gente planta, colhe e se alimenta também. eu só tenho a agradecer”.
O projeto Terra de Vida, do Centro Sabiá e da organização não governamental Caatiga, com o apoio da Cáritas Alemã — que também financia iniciativas que desenvolvem projetos de convivência com biomas — financiou todas as etapas de implementação da tecnologia de reúso de águas cinzas no quintal de dona Gerlande e de outras famílias da região e de todo o estado. Até agora, no agreste pernambucano e nos sertões do Pajeú e Araripe, já foram implantados 460 sistemas de RAC. Até o final de 2022, serão 550.