Paulo Freire inspira pedagogas que alfabetizam grupo de idosos em Caruaru

por | jan 3, 2024 | Reportagens

Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

Texto publicado em parceria com a Marco Zero Conteúdo

Em 1963, em apenas 40 horas, Paulo Freire conseguiu alfabetizar 300 camponeses em Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte. Àquela época, acompanhado de universitários e professores voluntários que, para angariar alunos no município, batiam de porta em porta perguntando se os moradores sabiam ler e escrever e  anunciavam em alto-falantes que ensinariam a quem quisesse aprender, o educador provou que a alfabetização em massa é possível e que adultos podem aprender rápido e de maneira efetiva. 

Em 2023, 60 anos depois, em Caruaru, agreste de Pernambuco, as pedagogas Amanda Medeiros de Andrade Carvalho, Íris Jacira de Lima Andrade e Rosângela Beserra Silva, inspiradas no Método Paulo Freire de Alfabetização, trabalham com 16 alunos, entre 69 e 87 anos, que fazem parte da turma “60+”, integrada à Educação para Jovens e Adultos (EJA). É a primeira turma do programa formada apenas por alunos com mais de 60 anos na modalidade de ensino. 

Os alunos são moradores da Casa dos Pobres São Francisco de Assis, organização não governamental de longa permanência que acolhe pessoas de Caruaru e de outros municípios da região. O projeto da turma 60+ é do Conselho do Idoso de Caruaru (Condica) e é desenvolvido com aulas ministradas no refeitório da própria instituição, de segunda a sexta-feira, das 14h às 16h. 

Amanda foi cedida pela EJA do município e, ao lado de Íris, conselheira do Condica, ministra as aulas. Rosângela é funcionária da secretaria de Educação e coordena as atividades da EJA 60+ em Caruaru. O aprendizado acontece dentro de uma dinâmica de ensino transdisciplinar, que oportuniza a construção de conhecimento com uma grade curricular construída principalmente com base em métodos que partem da vivência dos seus alunos, dos lugares de onde vieram e das suas lembranças e histórias.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada em junho de 2023 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, da população brasileira com 60 anos ou mais, 16% não sabiam ler e nem escrever. A 60+ da EJA em Caruaru tem apenas quatro meses, teve início em agosto deste ano, e já apresenta resultados de impactos positivos na vida dos alunos. 

Na última terça-feira (19), acompanhei a confraternização de fim de ano da turma. Lá, conversei com Bernadete Maria Silva de Santa (foto no alto), de 73 anos, que nunca tinha ido à escola. Participando das aulas na casa de acolhimento onde vive, aprendeu a ler e escrever o seu nome, passou a conhecer os números e caminha para uma leitura mais fluída dos textos que são apresentados nas aulas. “Eu nunca tinha ido à escola. Hoje, eu já faço o meu nome, conheço as letras, os números. Eu não conhecia nem uma letra. Faço tudo a pulso, com dor, porque tenho artrite e artrose. Mas, mesmo assim, quero continuar”.

Elias Francisco elogia as professoras que lhe ensinaram a assinar o nome. Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

Na festa, também tive a oportunidade de conversar com Elias Francisco de Melo, de 78 anos. Ele também aprendeu a ler participando das aulas da turma 60+. “Eu digo que ainda estou aprendendo. Mas eu escrevo o meu nome sem olhar no quadro. As aulas são muito boas. Elas são boas professoras. E, se a gente não for pra aula, elas vão no quarto da gente buscar. Aprendo muita coisa, consigo ler um bocado”.

Falando sobre a dinâmica e método das aulas, a professora Íris reforça a inspiração no trabalho de Paulo Freire. “Nós abraçamos Paulo Freire, a leitura de mundo. A cada aula, a gente tenta trabalhar pensando também no que eles querem aprender. A gente busca saber onde foi que eles pararam, o que foi que eles viveram, o que nós temos como base para construir conhecimento a partir da realidades deles”. 

A coordenadora do projeto, Rosângela, colabora com a fala de Íris. “O nosso intento, na verdade, não é apenas ensinar, entende? É oportunizar a construção do conhecimento com o currículo que a gente estruturou. Com aulas de Ciências, Matemática, Língua Portuguesa, entre outras disciplinas, ele é voltado para a vivência. Tudo partindo da leitura de mundo deles”.

A Educação Para Jovens e Adultos em Caruaru já atendia pelo menos 150  idosos nas escolas tradicionais do município, mas integrados a turmas com alunos de diferentes idades e sempre à noite. A turma da EJA 60+ reúne apenas pessoas que tenham a partir de 60 anos de idade e as aulas acontecem durante o dia, justamente por uma questão de mobilidade e adaptação aos horários das pessoas matriculadas.

Com o sucesso do projeto, é possível que ele se estenda a outras instituições de acolhimento em Caruaru. “Essa turma da EJA 60+ é bem específica. Tudo, nela, acontece de uma maneira diferente do que a gente aplica tradicionalmente. Ela tem conteúdos diferentes, métodos diferentes, alguns materiais didáticos são adaptados para que eles [os alunos] possam utilizar. Tudo isso fez e faz com que a gente aprenda para poder ampliar. E a gente quer que o projeto cresça, se multiplique por Caruaru, em outras instituições”, afirma Danielle Medeiros de Andrade, coordenadora da EJA no município.

A festa que reuniu a turma 60+ para uma confraternização de final de ano aconteceu no pátio da secretaria de Educação e Esportes do município. Dias antes, os alunos escreveram cartas, de próprio punho ou com ajuda das professoras, falando sobre o que gostariam de receber neste natal de 2023. 

O curioso é que se esperava que os pedidos fossem relacionados a desejos de paz, saúde e prosperidade para todos eles e os seus familiares. No entanto, as cartinhas chegaram com pedidos de relógios, bonés, roupas, chinelos, bonecas e até aparelhos de som com entrada para pendrive. Diante dos pedidos inesperados, as professoras Amanda, Íris e Rosângela lançaram uma campanha entre amigos e familiares para arrecadar fundos para a compra dos presentes dos alunos. Ao final da festa, todos voltaram para casa felizes e com os presentes desejados.

Pela primeira vez, os 16 idosos e idosas escreveram seus pedidos de Natal. Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã